Clubes do Livro transformam a vida de pessoas 60+: ‘Se existissem mais, teríamos menos farmácias’

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Clubes do Livro transformam a vida de pessoas 60+: ‘Se existissem mais, teríamos menos farmácias’

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Guilhermina Zanelato, aos 73 anos, costuma descrever a pandemia da covid-19 como o “horror da sua vida”. Confinada em casa, convivia com a doença do marido. Quando o mundo externo se fechou, ela descobriu outro, aberto e livre, na literatura.

O contato com um clube de leitura foi tão impactante naquele contexto – um “divisor de águas”, resume ela – que ela se sentiu motivada a compartilhar a experiência com mais pessoas. Foi quando ouviu de uma conhecida dizia ficar à janela contando os carros que passavam na rua para passar o tempo e decidiu dar início, ela mesma, a uma roda de conversa entre os vizinhos.

Guilhermina é uma das participantes do Clube de Leitura 6.0, que já atendeu, virtual ou presencialmente, 3.525 pessoas idosas com idades entre 60 e 102 anos, organizado pelo Observatório do Livro e da Leitura, com sede em Ribeirão Preto.

A quase 500 km de Ribeirão, outro grupo surgiu com objetivo parecido: é o Clube de Leitura 60+ da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP. Também online e presencial, o clube atende cerca de 40 pessoas de vários estados do Brasil e até de fora – já con ou até com participante venezuelano.

O Estadão acompanhou um encontro do Clube de Leitura da USP ao final de março e, curiosamente, olhar pela janela também esteve entre os assuntos, mas de forma diferente. Em determinado momento, uma das participantes, Marilene Alves Penha, de 75 anos, interrompeu a discussão para mostrar um passarinho que havia pousado em sua janela.

Marilene havia acabado de ler para a turma um conto inspirado no avô, que, pouco antes de morrer, pediu ao caseiro de seu sítio em Minas Gerais para soltar os passarinhos presos no pomar. “‘Agora sim as árvores estão livres e, daqui a pouquinho, eu também estarei voando’. Deitou-se, suspirou aliviado, fechou os olhos lentamente e bateu as asas para lugar nenhum, para um mundo novo”, havia escrito ela ao final do texto.

As dinâmicas em ambos os clubes acontecem de formas diferentes. O Clube 6.0 foi desenhado para que os participantes leiam em e-books ou tablets com o suporte do grupo, enquanto, no Clube da USP, os integrantes são incentivados a escrever seus próprios textos e a se aprofundar em determinado tema – neste semestre, as aulas tratam das “escolas literárias”.

Em ambos, porém, há relatos bem parecidos: participantes que superaram momentos difíceis, se tornaram mediadores de leitura ou até fundaram editoras para publicar livros. “Eu acho que, se existissem mais clubes [do livro], teríamos menos farmácias”, diz Guilhermina. Conheça, abaixo, os relatos, opções para quem deseja participar de um clube presencialmente em São Paulo e os benefícios da leitura para pessoas idosas.

Clube de Leitura 6.0

O Clube de Leitura 6.0 surgiu em resposta a um problema no País: os baixos índices de leitura. O jornalista e escritor Galeno Amorim, presidente do Observatório do Livro e ex-presidente da Biblioteca Nacional, idealizou o projeto ao se deparar com dados preocupantes da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, a maior sobre comportamento leitor brasileiro e que já foi coordenada por ele.

“Percebi que, em certos segmentos da população, a baixa, e mesmo a ausência absoluta da leitura, era mais grave do que em outros”, diz o jornalista. Segundo Amorim, os dados mostraram que a população acima de 70 anos tinha um hábito de leitura sete vezes melhor do que as faixas etárias mais jovens. Ele, então, chegou à conclusão de que o que faltava era estímulo.

Lurdinha Kumakura é participante do Clube de Leitura 6.0 e mediadora voluntária do Clube de Leitura no Cárcere. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O projeto do Observatório surgiu pouco antes da pandemia: o objetivo era instalar 100 clubes em 17 cidades. O isolamento obrigou que o plano fosse adaptado ao formato virtual – hoje, os que se inscrevem no Clube do Livro 6.0 têm acesso a uma biblioteca virtual com 30 mil títulos.

Galeno diz que, ao longo desses últimos anos, presenciou “todo tipo de história que se possa imaginar”. “Em um clube na Grande São Paulo, um casal aproveitava as lives semanais do clube para mandar recadinhos um para o outro. Em outro clube, uma senhora que vivia uma relação abusiva conseguiu pedir ajuda e pôr um fim ao casamento. Em outro, ainda, duas senhoras foram realizar o sonho de ir a um campo de nudismo”, conta.

Outros projetos do Observatório também são promovidos para a população 60+: o Tomates Verdes Fritos, voltado para pessoas idosas em tratamento contra o câncer e doenças neurodegenerativas, e o Clube de Leitura nas Ruas, para pessoas idosas em situação de rua. Também há outros clubes para outras faixas etárias, como o Clube de Leitura no Cárcere, que acontece desde 2009.

As histórias do Clube de Leitura 6.0 e do Clube de Leitura no Cárcere atravessaram a vida de Lurdinha Kumakura, de 66 anos. Participante do Clube 6.0 desde 2022, ela foi inspirada a atuar como mediadora voluntária na Penitenciária de Ribeirão Preto. Depois do clube, Lurdinha ainda concluiu um curso de biblioterapia (saiba o que é aqui) e deu início a um de psicanálise.

Foi a partir da entrada no clube de leitura para idosos que a leitura passou a se tornar constante. Eu leio praticamente todo dia. […] Foi um divisor de águas na minha vida.”

Lurdinha Kumakura

Lurdinha Kumakura, de 66 anos, diz que clube de leitura foi ‘divisor de águas’ em sua vida. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para a bancária aposentada e formada em direito, começar a atuar como mediadora no cárcere veio com uma “cobrança” interna: fazer algo pelas pessoas. “Ajuda-las a dar um sentido maior para a minha vida, além de cuidar de mim”, explica.

Lurdinha atua como mediadora na penitenciária masculina de Ribeirão no regime semi-aberto há um ano. A escolha de se voluntariar no projeto para pessoas em situação de cárcere veio por avaliar que ele seria o mais “desafiador”. “Muitos amigos meus me criticam e até veem esse meu trabalho horrorizados, achando que eu vou correr algum risco lá. Mas não é nada disso”, diz.

Ela relata ter vivido vários momentos emocionantes tanto como participante quanto como mediadora. “Para eles [pessoas em situação de cárcere], é como se a leitura na penitenciária fosse um oásis no deserto”, comenta.

Como participar do Clube de Leitura 6.0? Os encontros acontecem presencialmente em Ribeirão Preto e online uma vez por semana, sempre nos mesmos dias e horários. Para participar, basta se inscrever no site do Observatório do Livro e da Leitura, onde também é possível ver os dias e horários disponíveis. A inscrição é gratuita e dará acesso a uma biblioteca virtual com 30 mil e-books.

Clube de Leitura da USP 60+

Parece curioso que a Escola de Engenharia da USP promova um projeto de leitura, mas tudo se explica com a professora Eliane Pedrozo, de 48 anos, à frente do projeto. Formada em química e dando aulas para engenheiros na universidade, ela decidiu fundar o Clube de Leitura do programa USP 60+ como um projeto de extensão. “Eu sentia falta de conversar com as pessoas sobre cultura”, diz.

Atualmente, o grupo tem encontros presenciais em Lorena e virtuais. Mas, mesmo para quem decide participar online, as amizades e os encontros são garantidos. “Com o grupo, duas participantes descobriram, inclusive, que moravam no mesmo prédio”, conta.

É comum que os integrantes até aproveitem para viajar e visitar uns aos outros – no grupo que mantêm no WhatsApp, muito elogiado por não ser “apenas um grupo de ‘bom dia e boa noite’”, eles trocam dicas de passeios culturais. “Nós somos de idades diferentes, de posições políticas diferentes e convivemos muito bem, em perfeita harmonia”, comenta Adelaide, uma das participantes, durante o encontro em que o Estadão esteve presente.

Registro de um dos passeios do Clube de Leitura promovido pela USP 60+. Foto: Arquivo Pessoal/Eliane Pedrozo

O grupo veio como uma surpresa boa para a escritora Elza Francisco, de 75 anos. Ela, que atuou na educação durante 47 anos – chegando, inclusive, a ser diretora da Secretaria de Educação de São Paulo –, entrou no clube para estudar sobre uma possível implantação de uma universidade para pessoas idosas no Rotary Club em 2014.

“Foi a melhor coisa que me aconteceu. Foi uma mudança radical na minha vida”, diz. Elza começou a escrever pouco antes do clube, depois de ganhar de presente um livro de poesias. “Eu pensei: ‘Parece que eu posso escrever isso aqui’”, brinca.

O projeto da USP, porém, lhe deu um incentivo a mais: seu amigo, Ismeraldo Sousa, de 75 anos, decidiu fundar uma editora enquanto participava do clube, a IPS Artesanal. Os dois haviam se conhecido no Recanto das Letras e chegaram a escrever um livro juntos, publicado pela Dialética.

“Elza me provocou e aceitei produzir os nossos livros”, brinca ele, que mora em Ilhéus, na Bahia. Desde 2022, a editora de Ismeraldo já editou 15 livros para três escritores. Deles, nove foram para Elza.

Como participar do Clube de Leitura da USP 60+? As inscrições para o semestre atual do Clube do Livro da USP 60+ já estão encerradas. Acompanhe os canais de divulgação da EEL para saber as datas da próxima leva de inscrições. Atualmente, os encontros acontecem às terças-feiras, das 14h30 às 17h. Para participar, é necessário ter o ensino fundamental completo.

Quais os benefícios da leitura para pessoas idosas?

Os benefícios de participar de um clube do livro vão muito além do que a leitura em si. O médico Pedro Melo, neurologista do Hcor, diz que evidências científicas sugerem que desenvolver o hábito de leitura tem benefícios para a saúde mental, como diminuição do estresse, ansiedade e depressão, e para a saúde física, contribuindo para uma vida mais longeva.

Maria de Lourdes Kumakura, a Lurdinha, na Livraria da Vila da Fradique. Benefícios de um clube do livro vão além da leitura em si. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Há estudos que também associam o hábito de ler ao atraso ou até diminuição do risco do desenvolvimento de demência. Um estudo de 2021 do respeitado jornal Neurology mostrou que atividades intelectualmente ativas, como ler, escrever, jogar xadrez e montar quebra-cabeças, reduzem ou atrasam o desenvolvimento de Alzheimer em cerca de 5 anos.

“Você desenvolve uma reserva cognitiva”, diz. “É como alguém que teve a musculatura muito forte a vida inteira porque sempre fez atividade física e, então, fica com restrição de movimentação. Essa pessoa tem mais massa muscular e aguenta mais tempo até ter um problema por imobilidade”, exemplifica.

O hábito de participar de clubes do livro, segundo o neurologista, aumenta o engajamento na leitura e cria uma sensação de pertencimento. Além disso, o médico afirma que conexões sociais são “extremamente importantes” para o bem-estar, a saúde mental e a longevidade.

Conheça clubes que fazem encontros em São Paulo

Para quem se interessou em participar de clubes do livro, mas está em São Paulo e prefere encontros presenciais, há diversas opções na cidade voltadas para o público acima de 60 anos. O Estadão lista duas delas. Conheça:

Clube de Leitura 60+ do Sesc Pinheiros

O Clube de Leitura do Sesc Pinheiros surgiu em 2023 por iniciativa de algumas mulheres que se reuniam no local para discutir as leituras mensalmente, segundo Jailton Nascimento Carvalho, programador socioeducativo do Sesc Pinheiros. O local, após tomar conhecimento do grupo, teve a iniciativa de contratar profissionais para realizar a mediação.

Hoje, as fundadoras decidiram continuar nos encontros apenas como participantes e a indicação dos livros é feita pela própria organização do Sesc. “A seleção das obras é baseada em reconhecimento literário pela crítica especializada e pelo público, bem como premiações e estudos acadêmicos”, diz Carvalho.

O clube é dividido trimestralmente e possui dois formatos: o com livros e textos curtos – que possui encontros mensais – e o chamado Grandes Livros – com encontros semanais. Neste ano, a proposta é que os participantes leiam dois livros curtos e um livro longo.

Em janeiro, o clube realizou a leitura de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, no formato de Grandes Livros. Em fevereiro, o livro escolhido foi O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, e, em março, Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Entre abril e maio, os integrantes voltam ao formato Grandes Livros para ler Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. O livro de junho também já está definido: será O jogador, de Fiódor Dostoiévski.

Como participar? Participar do Clube de Leitura 60+ do Sesc Pinheiros é simples: basta ter lido o livro escolhido – ou, no caso dos Grandes Livros, até o trecho programado –, chegar com meia hora de antecedência e se inscrever para o encontro. Confira a programação de abril e maio e a divisão de leitura de Um defeito de cor no site do Sesc.

Clube de Leitura da Livraria da Vila

A unidade da Rua Fradique Coutinho da Livraria da Vila também promove um clube do livro desde março de 2023, mas o fato de ter apenas integrantes com mais de 60 anos aconteceu por acaso. O grupo é mediado pelo livreiro Sadrac Leitão, de 35 anos, que esta à frente de clubes de leitura há 12 anos.

“Durante o atendimento na livraria, ao trocar ideias sobre a leitura, notei que leitores dessa faixa etária sentiam a necessidade de ter com quem falar sobre suas leituras”, diz Sadrac. “Com isso, percebi que eu poderia agregar com um grupo mensal para trocar informações sobre um determinado livro.”

Hoje, o clube já tem duas reuniões mensais: no último domingo do mês, às 16h, para discutir o último livro escolhido, e na segunda terça do mês, em que um escritor é convidado para uma roda de conversa com os participantes. Geralmente, as obras são decididas por meio de uma votação.

O próximo encontro do Clube do Leitura será no dia 21, das 16h às 18h. Os participantes também discutirão o livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

Como participar? O Clube de Leitura da Livraria da Vila da Fradique Coutinho é gratuito e não é necessário uma inscrição prévia. Para participar, basta ter lido o livro e aparecer no dia do encontro. As obras escolhidas são sempre publicadas no blog do site da Livraria da Vila.

Fonte: Externa